Se ninguém acredita neste amor e até ele que o partilha me pergunta se a dor que senti era a saudade de não o ter, que faço da verdade do que sinto? Escondo no peito as batidas vorazes que me consomem em cada beijo, em cada toque na mão apertada, por cada vez que nos fazemos homem e mulher no conceito mais puro e cruel da carne, a alma a voar alto onde o coração não tem sentido por tudo o que sente ser demasiado para explicar? Como o amor é nefasto.
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Falei deste amor com outros. Acharam-me louca, disseram que só nos livros existia coisa assim, vivido é a impossibilidade do ser entre dois. Tristemente, não acreditaram. Tristemente, acharam que a antiga loucura de que padecia me havia para sempre tomado e retido entre páginas de um romance de um amor imaginado.
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Vivemos num amor tão profundo que quase me sinto culpada de um crime. É que afinal amar desta forma tão plena e ver os outros tão pobres sem o mesmo que nós, faz-me sentir culpada de não saberem o que não têm. Digo-lhe o que sinto e ele aponta aos outros a própria culpa deles. Mas eu sei que assim não é porque já estive nos seus lugares tristes e nem por isso a culpa era só minha.
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Perguntou-me ele se eu sofrera pela sua distracção, pela sua ausência de sentimentos por mim enquanto não estivemos juntos. Olhei-o no fundo dos olhos como se o estranhasse. Nada lhe disse, deixei-o pensar na sua própria pergunta. A resposta há-de estar dentro dele. Ou em mim, no tempo que estiver comigo, diluídos um no outro sem separação que se consiga encontrar para dizer este é um e aquele é um outro.
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Agora não tenho medo e não sei se isso é bom. Mas não me interessa. Não sinto receio de perder este amor, confio nele todos os dias porque o sinto grande todos os dias. O futuro é que é sempre o medo e eu não quero saber de amanhãs nem de incertezas nem de grandezas que hão-de chegar ou não. Quero ter este amor hoje, confiante e belo, perto do meu peito porque é agora que ele está junto a mim e me olha e me beija e eu nada temo.
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Nada temas, disse ele, e por uma qualquer razão sem razão nenhuma dos homens eu acreditei. Porque tenho de acreditar e já enterrei o meu coração uma vez e o voltei a por dentro do peito, não podendo falecer de novo a este amor que não me deixa tão pouco ir nem ficar. Não temo, disse eu, e sem razão porque no amor não tem de havê-las, confiei.
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Um sopro de vida ou o renascimento foi o que recebi naquele beijo. Não importa a quantidade de vida, tão mais importante sentir o sangue nas veias e os olhos a verem o mundo, a sentir-me feliz e com dor, risos e lágrimas, tudo como deve ser. O beijo, um toque encantado. E depois outro e ainda mais um, gotas de alma para me manterem alimentada. Nada lhe disse, deixei que os lábios colhessem em silêncio o que não sei contar em palavras. Ele retribuiu com outro beijo.
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Não tive a ousadia prometida. Mas saímos, caminhámos e porque o sol foi gentil, o banco de jardim recebeu-nos morno, entre sorrisos e lembranças daquele dia de chuva pequenina. Ali ao lado, os restos do meu coração, penso, e olho para ver se do aterro há vista que alcance os pedaços mas a relva e alguns malmequeres cobrem coloridos um montinho encantador. Um ar leve toca-me, olho-o nos olhos e seguro-lhe as mãos. Sinto os lábios a pegarem os meus, quentes e húmidos. Toda a certeza do meu peito bate acelerada. Nada está naquela terra.
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Vieste visitar-me, é a terceira vez desde que nos encontrámos no jardim junto ao banco, uma coisa infantil que não passa da ombreira da porta, minutos de aceleração em que abano a cabeça e tu sorris muito. Depois vais embora e eu por dentro, maltrato-me de não te ter puxado e beijado, fervorosamente como se fosses a minha religião. Fico a imaginar que da próxima serei corajosa, serei tudo aquilo que esperas e eu também.
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Que fazer das mãos quando parecem ocupar um espaço onde tocam as tuas, o teu corpo, ou sentem a vontade de levemente roçar o teu rosto, o pescoço, puxar-te a mim e não te desprender, gritar o medo da perda e apertar até o sufocar de tanto querer? Não me lembro do que te disse. Só me recordo das minhas mãos a ganharem vida própria e do medo que elas pudessem fazer o que vontade não tinha domínio para controlar.
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Não é justo nem apropriado que te venhas sentar no banco de jardim. O meu banco de jardim. O nosso que foi. Fiquei parada nesta procissão que todos os dias faço, talvez espere que a chuva esburaque de vez a terra e coma os restos do meu coração, mas não serás tu a desventrá-lo onde eu o enterrei. Ergues-te quando me vês, sorris, cobres o meu corpo com o teu guarda-chuva e tão próximo quanto dois estranhos falamos do tempo, da chuva que cai miudinho neste momento, do frio de Dezembro, de palavras que não me lembro de dizer.
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O banco de jardim é agora um monumento a um pedaço de terra empapada onde apodrece o meu coração. Falta alguma me fará, sigo sem ele, assim o tempo vai correndo também sem aves no céu ou estas a cantarem para dizerem vida na terra. Tudo parece parado. Só eu sozinha caminho nos mesmos passos de sempre infindavelmente conhecidos sem evitar a repetição dos dias e a repetição dos passos nos caminhos. Não me procuro, persigo-me.
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Deixo-me andar cá fora ao frio até tarde, muito tarde, até a luz toda se ir e eu não conseguir mais ver as pequenas aves. As estórias esgotam-se com a claridade e entro, ponho um xaile sobre os ombros e ouço os demais falarem como estou melhor, como tudo me passou, como tenho ido para a rua procurar a vida lá fora e olhar os céus, sorrir com os pássaros que emigram na busca de calor. Aconchego-me à memória dos teus olhos, da tua boca, do teu silêncio e são todos esses adeuses que me desligam a luz.
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As aves já partem, juntas, um traço negro a desenhar-se no azul que as recebe gratificado e se agua em lilases amarelecidos pelo declínio do dia. Acalmo o meu peito imaginando que me levam consigo, lá do alto é tudo tão distante e difuso, até as dores de ter sentido a paixão de um dia ter sido mulher.
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O dia está tão bonito, o céu tão liso que quase tenho medo de saír à rua. Medo de me sentir feliz com o sol, claridades a inundarem-me na esperança. Medo de ter esperança. Porque sei que não aguento voltar a sentir, ter veias e doer-me nos braços a vontade de um abraço. Medo de querer de novo e nada alcançar, tudo se repetir como os caminhos que os meus passos comandam sem ser à minha voz. Que medo que dá ver um dia tão escandalosamente belo.
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Pensei no meu coração enterrado junto ao banco do jardim. Levei-lhe flores. Talvez assim, quando de novo te encontrar, o meu sorriso se lembre destas flores deixadas em peregrinação. Talvez recupere a voz na oração que não soube fazer e te chame. Talvez haja tempo de esperar pelas lágrimas do reencontro e alimente a terra onde seca uma parte de mim.
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Se tivesse tido força tinha aberto a boca, chamado por ti, mostrava-te o meu sorriso. E desse vislumbre do teu, o meu regar-se-ia como flores que renascem sedentas quando aparentam ter murchado. Fiquei por lá, parada, sem nada na garganta que me impelisse o som, os lábios desenhados na vontade, mas o viço não despontou sequer um botão.
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Tu, de novo. Eu sem saber como se faz para sorrir, o tempo desaprendeu-me, o coração enterrado perto do banco do jardim ficou-me com o sangue que me daría a força para arquear os lábios, tingi-los da vida que agora preciso para me poderes ver. Tu, outra vez e a sorrir para mim. Tento recordar-me como se faz para mostrar um sorriso mas quando a lembrança volta já tu partiste. Sorrio ao ver as tuas costas a afastarem-se.
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Como era feliz quando ignorante achava o plano dos sonhos o fio que me havia de levar, sem perder, à concretização do meu amor por ti. Eram esboços do que havería de ser a obra principal. Não sei quando, esse fio libertou-se da minha mão, fiquei sem saber como chegar aos sonhos, perdi-me. E neste estado, sem viver e sem sonhar, acharam-me alma penada, levaram-me antes do tempo.
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Por andar tão curvada vejo melhor a ponta dos meus passos. E admiro-me, de ensinados que estão na trilha de caminhos sempre conhecidos, não me obedecerem a mudar a direcção. Fatalmente. Porque me levam, penosos, a viagens de sons e imagens em que tu apareces, em que eu ainda sonhava com beijos que me pudesses dar. Peço aos passos que parem, mas lestos encaminham-se no conforto do espaço onde a memória lembra tempos felizes.
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Sinto um peso nas costas, todo o chumbo que se me agarrava ao peito e me fazía curvar, apoiou-se sobre os meus ombros, a nuca. É uma força brutal que me carrega para baixo. Talvez a culpa seja minha, deverá esta ser a sensação dos condenados, clamarem a sua inocência e nos olhos dos outros ver o espelho dos seus crimes. O meu sabes bem qual é. E carrega-me, quase me sepulta.
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Vi-te. Tu também, disseste adeus e com um grande sorriso. Depois seguiste caminho. Livre como se não fosses culpado de nada.
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Agora atravesso o jardim em passos largos. Não me sento no banco, sustenho a respiração o quanto posso para que não fique presa nas alucinações do perfume das flores. Mas fora dali, quanto mais força faço para te trazer à lembrança, mais distante me apareces, mais longe ficas. Arrependo a minha promessa e tenho vontade de voltar ao banco do jardim, de dizer sim de novo, que te quero a ocupar-me outra vez. Antes o sofrer por um amor ausente que nada ter, nem memória, nem cheiro de coisa vivida, só vislumbres de filmes de amor representados em salas escuras onde se chora por outros por não saber o que é chorar por si.
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O tempo quente traz o sabor das flores. Dei comigo no nosso banco de jardim. Talvez inebriada pelo perfume do ar, as recordações vieram em ondas como se a tua presença ao meu lado fosse tão real quanto o sol a bater no meu rosto. Mas dizias-me coisas nessas lembranças, que não estou muito certa que tenham acontecido. Eram demasiado belas, demasiado apaixonadas, demasiado verdadeiras para que fossem a verdade do que guardei. Dei comigo no banco do jardim, bêbeda de saudades e desejei que o Inverno chegasse para me curar.
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Penso nele. Em ti, sim. E traço linhas do destino daquele tempo em que eu caminhava por cima das tuas pegadas invisíveis, agora alguém as faz nas minhas. O tempo aperta-se como um parafuso que se enrosca sem ter fim, moído pelo coração dos que se querem e dos que não se querem. Dois mundos. Dois tempos, dois destinos. O meu, sempre do lado errado.
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Então é isso, querer e não querer, querer e não poder, querer e não chegar. Persegue-me como um cão castigado que procura a clemência do afago. Mas sei, que mal eu pousar a mão sobre o dorso, o pêlo se há-de eriçar preparando-se na oportunidade para me morder. Prefiro que a dentada da recusa me ferre o peito e mantenho-o afastado. Não voltaremos ao jogo do perdão.
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Porque não sabem, dizem-me que fujo da felicidade. Não sabem de nada. Corro de encontro à solidão, velha amiga que prefiro ao engano de um amor que me toma os pulsos até aos ossos, para depois ajoelhar na penitência. Não sabem de nada, julgam-me doida por preferir os cantos ao abraço do meu carrasco. Não sabem de nada, nem quem sou nem quem fomos.
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Sou a corajosa e digo-te, logo eu que tanto busco o amor. Não queres escutar, foges para as recordações de um corpo único em que fomos e fazes-me chorar. Acaso achas que eu possa esquecê-lo algum dia? É por essa honra que temos e que tivemos que cada caminho agora se fazem dois. Deixemos o que é bom enquanto é bom, não vale a pena apodrecer o que está dentro de nós.
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Afirmas-te diferente e que não voltará a acontecer mas de tantas vezes o dizeres, vejo disfarces nas palavras insistidas em que tentas convencer mais a ti do que a mim. Porque eu nada digo, baixo os olhos para que não vejas que eu sei. Estamos acabados. Que pena. Éramos tão belos. Tão mais belos porque ainda nos gostamos e não podemos estarmos juntos. Infortúnio este.
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Pedes perdão e eu perdoo. Mas não me convenço porque não me perdoo a mim, fica-me um espinho agarrado ao peito a sangrar devagarinho. Sei que outras vezes virão e das próximas esta ferida infectada vai deitar tanto sangue que há-de matar o que já não tenho.
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©opyright Escritos Nefastos, Maria Manuel Gonzaga, 2009-2016